Acordar
Há uma máxima que se tornou uma verdade de La Palisse e é conhecida por todos: “Não dês um peixe, ensina-o a pescar!” A grande maioria das pessoas iria concordar com esta frase sem qualquer hesitação - em parte, ela baseia-se na esperança de que todos os seres humanos são iguais e que o ambiente que o envolve determina a sua condição económica. A verdade é que todos, enquanto seres humanos, temos direito ao peixe - é tudo uma questão de direitos humanos.
Lembrei-me desta frase quando ouvi o hino do movimento Zero Desperdício [ver mais em http://www.zerodesperdicio.pt/ ] lançado pela associação Dariacordar [ver mais em http://www.dariacordar.org/ ] - esta associação visa acabar com o desperdício criando um sistema de distribuição de refeições que estão quase a ficar fora de prazo para quem precisa. O texto para este hino foi escrito por Tim dos Xutos e Pontapés começa da seguinte maneira: “Eu não sei o teu nome | Mas sei que te posso ajudar | Sei que andas a passar fome | mesmo andando a trabalhar.”
Peço-lhe que leia a quadra anteriormente citada novamente.
OK - Continuemos: “O que eu não aproveito | Ao almoço e ao jantar | A ti deve dar jeito | Temos de nos encontrar... E acordar...”
Leu o mesmo que eu li?
Há considerações sobre o bom senso (ou a falta dele...) nas palavras deste hino: “Sei que andas a passar fome mesmo andando a trabalhar” - Trabalhas mas passas fome... é a Vida! Mas que raio de sociedade deixa as pessoas que trabalham passar fome? Que raio de sociedade na União Europeia deixa pessoas que trabalham passar fome? É assumir resignadamente a injustiça e que as virtudes do mérito são uma ilusão.
Mas o pior continua: “O que eu não aproveito, ao almoço e ao jantar. a ti deve dar jeito...” - estas pessoas que passam fome mesmo trabalhando são dignas de comer restos...
Aceito que o que acabo de escrever é uma interpretação do hino - a intenção das pessoas pode ser boa mas reflecte uma mentalidade, consequentemente, uma ideia política: se pensarmos sobre o que o Tim escreveu, somos obrigados a concluir que há uma visão que sustenta muitos projectos e intervenções sociais. Se os problemas foram feitos para ser resolvidos também é importante pensar que os problemas podem ser prevenidos. Há muitas pessoas que pensam que a intervenção social serve para colmatar os problemas já existentes - o dilema é simples: a priori ou a posteriori, a montante ou a jusante, antes ou depois...
É mais fácil mobilizar a força colectiva das pessoas quando os problemas são visíveis e urgentes. O sucesso de movimentos como Banco Alimentar contra a Fome ou do Live Aid (e muito provavelmente do projecto Zero Desperdício...) vem daí - dá um pacote de arroz ou ajudas a carregar uma saca de batatas e o problema está resolvido. Parece tão fácil.
Ora... o problema é maior e estrutural e implica uma visão estratégica: é necessária uma antevisão dos problemas mas mesmo quando a sabedoria popular diz “Prevenir é melhor do que remediar”, a realidade acaba por ser “Casa arrombada trancas à porta!”...
Solidariedade social não é caridade. Políticas sociais para pobres são pobres políticas sociais e quando se pensam intervenções sociais para os coitadinhos o que se faz é pôr o rapazinho com o dedo no buraco do dique para que a água não entre.
Depois de ter reflectido sobre este “acordar”, lembrei-me de outro “acordar” - neste caso específico, o poema “acordai” de José Gomes Ferreira... fica um excerto:
“[...] Acordai | acordai | raios e tufões | que dormis no ar | e nas multidões | vinde incendiar | de astros e canções | as pedras do mar | o mundo e os corações”
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